A ficção dos diferentes infinitos (ℵ₀, ℵ₁, 𝑐..) na teoria cantoriana e na metamatemática
Da ficção do infinito nos números racionais, do corte diagonal de Cantor e da limitação simbólica do infinito em ato

Excetuando, aqui, as questões do espírito, é fato que é muito perigoso afirmar, dogmaticamente, uma verdade universal. Vivemos, talvez, no momento de maior apogeu e, paradoxalmente, de maior desconfiança quanto aos resultados e formulações da ciência — não à toa, a tendência de resumir a ciência (conhecimento universal e necessário) ao seu método (a observação e descrição) tornou-se inconscientemente dogmática na academia e nas grandes cátedras do saber.
Apesar dessas confusões, nossa razão — por vezes excessivamente econômica e vaidosa — insiste em acreditar. Não me refiro aqui à fé religiosa, mas à crença na própria razão: à aceitação, por vezes inconsciente, da validade epistêmica de suas próprias premissas e conclusões. Trata-se de uma confiança estrutural, que subsiste mesmo quando os métodos vacilam.
Não estou, aqui, tratando de crer em Deus, na Igreja ou nos milagres eucarísticos; isso é outra seara, da qual a ciência teológica se ocupa com o devido aprofundamento. Falo, sim, de crer na própria razão: crer na validade epistêmica de suas premissas, mesmo quando seus instrumentos metodológicos permanecem falíveis. Trata-se de um ato de fé filosófica que, embora muitas vezes inconsciente, estrutura todo o edifício do conhecimento racional.
Kant dizia que a metafísica se enreda em antinomias justamente porque a razão, operando em sua total liberdade especulativa, consegue fundamentar racionalmente proposições contraditórias, como A = B e A = C, mesmo que B e C sejam mutuamente excludentes. Mas... não é essa a forma que tomam todas as ciências? Não há, na academia, quem aceite teses anteriormente tidas como arcaicas ou incorretas por seus pares? Não há também quem as reviva, desbancando consensos estabelecidos, para logo em seguida serem novamente refutadas, revistas ou descartadas? Esse movimento cíclico, longe de invalidar o método científico, atesta sua vitalidade dialética. Reduzir o método científico à condição de incongruente apenas por sua historicidade revisável seria um grave equívoco categorial.
A estrutura dialética das ciências — da metafísica à física, das matemáticas à lógica — não a torna incongruente, mas sim autenticamente humana. Nesse sentido, devemos reconhecer que há, nas ciências, algo que sempre escapa ao exercício da razão — algo com que, cruelmente, esta nos interpela constantemente, como uma musa, uma moçola carente que necessita ser buscada incessantemente, desejada. O homem moderno é faustiano não porque deseja meramente a conquista, mas também porque deseja tê-la em uma rigidez que esta, infiel, lhe nega. Trata-se do drama de um logos que, sedento de totalidade, choca-se com o limite do representável.
Essa busca pela verdade, pelo logos, pode ser delineada — como método muitíssimo agradável — através das ciências matemáticas. O leitor (ou ouvinte) que não estiver familiarizado com a matemática e suas representações não deve se sentir deslocado pela presente exposição. Ainda assim, recomenda-se ao estudante de filosofia uma introdução ao cálculo e à lógica matemática, a fim de que se familiarize com os códigos e problemas que se tornaram centrais para a filosofia moderna e contemporânea.
Na famosa demonstração de Georg Cantor, este realiza uma verdadeira e autêntica revolução — aquilo que, a posteriori, seria tratado de forma excepcional também por Gödel: há um além do contável, um infinito que sempre nos escapa e que dá, de forma misteriosa, a sustentação das ciências — nesse caso, das matemáticas. Como reconheceria também Hilbert, a própria tentativa de formalizar a totalidade do saber esbarra em limites constitutivos da linguagem simbólica.
Imaginemos que alguém, muito metódico e rigoroso, decida listar todos os números reais entre 0 e 1. Ele se senta com seu papel infinito e paciência ilimitada, e começa a escrever:
• O primeiro número: 0,123456...
• O segundo: 0,987654...
• O terceiro: 0,314159...
• O quarto: 0,271828...
E assim por diante, em uma lista que nunca termina.
Ele crê que, ao construir essa lista, conseguiu encapsular o infinito — como se o tivesse recolhido entre as margens de um inventário finito e ordenado. Mas Cantor propõe um experimento. Ele diz: “Observe os primeiros dígitos de cada número: o primeiro dígito do primeiro número, o segundo do segundo, o terceiro do terceiro, e assim por diante. Com esses dígitos, construirei um novo número.”
Assim, se os dígitos diagonais forem:
• Do 1º número, o 1º dígito: 1
• Do 2º número, o 2º dígito: 8
• Do 3º número, o 3º dígito: 4
• Do 4º número, o 4º dígito: 8
... então Cantor monta um novo número:
r = 0,2849..., modificando cada dígito da diagonal para garantir que o novo número difira de cada número da lista em ao menos uma casa decimal. Esse número, portanto, não é igual a nenhum da lista. Por mais que avancemos, sempre encontraremos uma casa decimal em que ele difere do número na posição correspondente. Por isso, diz Cantor, a lista estava incompleta — e não há como completá-la, não importa quão extensa ou meticulosa ela seja.
Agora, você pode se perguntar, dado o fato de que temos uma margem – literalmente infinita – de liberdade para escolher os dígitos do nosso novo número, se não poderíamos, dentro dessa variação infinita e de algum modo, escolher os dígitos de forma que eles acabem por se repetir. Ora, se todo número da lista original eventualmente repete seus dígitos após um número finito de casas, então por que o nosso "desvio diagonal" não poderia repetir com um período igual ao mínimo múltiplo comum de todos os períodos finitos dos números racionais da lista? O que garante a nós que, em dado momento, esse número decimal infinito não se repetirá, não aparecerá em algum dado momento da lista?
A resposta a essa pergunta é a chave para toda a discussão. Os dígitos de todo número racional se repetem após um número finito de casas, ou seja, o “período” de cada número racional é finito. No entanto, não existe um limite superior para o período dos números racionais — ou seja, os períodos são todos finitos, mas não há um maior entre eles. Assim, por assim dizer, o mínimo múltiplo comum desse conjunto de coisas estritamente finitas é infinito. Portanto, não há nenhuma esperança de que os dígitos da nossa construção diagonal venham a ter um período finito. Com isso, concluímos que a nossa listagem original dos racionais, que parecia incluir todos eles, de fato os inclui. O argumento diagonal de Cantor não nos levou a uma contradição.
É claro que, embora o argumento diagonal aplicado à nossa lista infinitamente enumerável não tenha produzido um novo número racional, ele produziu, sim, um novo número. Esse novo número pertence, com certeza, ao conjunto dos números reais — e, com certeza, não está na lista enumerável da qual foi gerado. Isso se aplica a qualquer lista enumerável que contenha, ao menos, todos os números racionais: o novo número que produzimos será um número real e irracional. Concluímos, portanto — talvez de forma surpreendente — que nenhuma lista enumerável de números pode conter todos os números reais. Foi a partir disso que Cantor refutou nosso homem metódico e percebeu ser possível falar, de modo significativo e baseando-se em uma coerência interna de seus sistemas, sobre diferentes tipos de infinito – problemática que abordarei dentro da questão do infinito.
Ora, não é novidade a miríade de objeções filosóficas que podem ser levantadas contra esse tipo de raciocínio. Alguns matemáticos especialmente ilustres criticaram duramente a ideia da "existência" dos números irracionais – não sem razão (cf. Teorema de Banach-Tarski). No entanto, como já aludimos, a coerência interna de tais raciocínios cantorianos permanece formal e internamente inconsistentes.
Ora, minhas delineações gerais sobre a problemática desse artigo e o objetivo de adentrarmos as matemáticas para provarmos nosso ponto permanecem nebulosas, portanto necessitamos de uma luz conceitual sobre as consequências da conclusão de cantor e de sua operação.
O corte diagonal de Cantor revela não é apenas um limite técnico da enumeração, mas uma falha estrutural: o contínuum, enquanto totalidade densa e não enumerável, resiste à redução a qualquer sequência ordenável segundo regras formais. Trata-se, nas palavras de Aristóteles – cuja a ideia buscava-se refutar na supra operação matemática –, da distinção entre o infinito em potência e o infinito em ato — sendo este último, por definição, irrepresentável enquanto totalidade.
A construção desse novo número é, antes de tudo, uma demonstração dos limites da linguagem simbólica em representar exaustivamente o contínuum (geralmente associado ao ℵ0 Aleph Zero) — e não, como comumente se pensa, uma evidência positiva da existência ontológica de um infinito real em ato. A diagonal cantoriana é, nesse sentido, a formalização de um impossível representacional: ela mostra que há sempre um elemento que escapa a qualquer tentativa de totalização simbólica, instaurando um limite estrutural no coração da representação matemática.
O número diagonal simboliza, em linguagem matemática, o ponto exato em que minha tese incide: toda tentativa de capturar o infinito por meio de signos finitos está condenada a uma contradição formal — pois o infinito, por definição, ultrapassa qualquer fechamento representacional. Como pode um número ser qualificado como “real” se, em termos estritos, jamais pode ser completamente expresso por uma representação finita ou apreendido por qualquer sequência algorítmica inteiramente especificável?
O número gerado por Cantor é, portanto, o paradigma de um irreal formalizado — um objeto que não é uno, nem dado, nem encarnado. Ele é, antes de tudo, a ruína da esperança formalista de totalizar o contínuo. Se tomarmos a sério a metafísica clássica — e creio que devemos —, o Uno é aquilo que não se deixa dividir, o Eterno é o que não é composto de partes, e o Ser é o que não pode ser simulado por acúmulo de símbolos (cf. Platão, Teeteto).
A diagonal de Cantor, ao contrário do que se pensa, não confirma o infinito atual, mas dissolve sua possibilidade formal. Ela mostra que, onde se tentou alcançar o infinito por meio de construções formais, alcançou-se apenas a superfície derradeira do finito — o seu limite extremo, mas jamais a ultrapassagem efetiva. O corte diagonal é, pois, uma ferida no formalismo, e não seu triunfo. Ele marca o lugar do resto, do não representável, do ponto cego da matemática que, ao tentar encarnar o infinito, revela apenas o contorno da própria ignorância e limitação.
Assim, o infinito real continua a ser um fetiche — não porque não se deseja que exista, mas porque sua representação é autocontraditória. Nenhuma série infinita o contém. Nenhuma operação finita o apreende. Toda forma que tenta fixá-lo termina por exibir, como Cantor, um número que não pode ser contado. É a ruína mesma da esperança moderna na matemática, daquilo que disse Galileu:
“A Filosofia está escrita no grande livro do universo e escrita em linguagem matemática, e suas letras são triângulos, círculos e outras figuras geométricas, de modo que sem elas não se pode entender uma só palavra.” (Il Saggiatore, vol. VI, pág. 232).
Importa destacar: não estou negando a possibilidade metafísica do infinito em ato, mas apenas sua representabilidade simbólica. Se o infinito em ato existe — e Aristóteles já o concebia como tal, embora reservado à intelecção divina —, ele o faz à margem de qualquer tentativa de enumeração, algoritmo ou sistema formal. A diagonal de Cantor não prova que o infinito atual é inconsistente ontologicamente, mas que ele excede os domínios da razão simbólica e formal.
Poderíamos concluir de forma satisfatória predicando que o infinito matemático é, tão somente, um eco do uno e eterno real. O infinito matemático, inclusive nos números reais, é apenas a incontável quantidade de números finitos dentro de uma estrutura; é o infinito em potência, pois nossa compreensão dele nos leva a crer que ele é interminável – e Cantor efetivamente nos prova que ele é incontável.
O eterno, o uno, o infinito em ato – ou o ato puro –, por sua vez, distancia-se disso pois o Uno não pode ser múltiplo qual os números finitos, pois se é uno, é uno só; mas se é múltiplo, não é uno. O que é múltiplo não pode ser uno; logo, o Uno não é múltiplo. E se é uno, não pode ser dividido; se é dividido, não é uno. E assim, o Uno é e não é, é e não é, não pode ser, e, no entanto, é.
Bibliografia
ARISTÓTELES. Metafísica.
MATHPAGES. Cantor’s diagonal proof. Disponível em: http://www.mathpages.com/home/kmath371/kmath371.htm. Acesso em: 11/07/2025
PENROSE, Roger. A nova mente do imperador. São Paulo: Editora UNESP.
PLATÃO. Teeteto. Tradução e notas variadas. Editora Edipro
PORTA, Mário. Introdução ao pensamento de Immanuel Kant. Editora Monergisto.
GALILEI, Galileu. Il Saggiatore, in opere complete, 1623.
E foi nessa mesma linha de raciocínio que surgiu paradoxos que mudaram a matemática do século XX, como o Paradoxo de Russell, que desmontou a tentativa de Frege de sistematizar toda a matemática como conjunto.
A incompletude desenha bem os limites da razão. Já vi professores explicarem o Hotel de Hilbert e a cardinalidade de Cantor de maneira que você realmente se convence de que há um infinito perfeitamente representável, quando a própria noção de cardinalidade, quando analisada friamente, existe justamente para rejeitar essa posição
Excelente texto.